segunda-feira, 25 de julho de 2011

Quatro pãezinhos.

Nunca tinha visto aquela moça atrás do balcão da padaria. Pele branca e bochechas rosadas, como o pessoal do sul normalmente tem. Quando pedi meus quatro pãezinhos, ela mordeu os lábios por um segundo, olhou de relance os poucos que restavam atrás dela e finalmente me disse, com voz de conforto, que o pães fresquinhos já deviam estar chegando. Se eu pudesse esperar.
Antes que eu pensasse no que responder, lá veio outra moça trazendo um cesto enorme de vime. Barulho das cascas torradinhas caindo uma sobre as outras. Cheiro da massa quentinha e vontade de mergulhar em uma piscina de pães.
Sorri e comentei com a moça das bochechas que era a segunda vez que isso acontecia comigo naquela semana. Foi com a maior naturalidade do mundo que ela respondeu: Que felicidade! Vou torcer para a senhora sempre dar sorte assim.
Felicidade era ouvir alguém desejar tão pouco com tanta honestidade. Sorte era ser domingo.
Felicidade e sorte embaladas num saco de papel marrom.

terça-feira, 24 de maio de 2011

My own little Miss Sunshine


A primeira lágrima caiu por corujice, reconheço. Assim que a música começou e as perninhas gordinhas apareceram no palco, eu já amoleci a respiração e me encostei na cadeira, assumindo sem vergonha o meu papel de tia bobalhona. Chorei mesmo. Deixei as lágrimas escorrerem pelo rosto, a voz engasgar, o nariz avermelhar e tudo mais que eu tinha direito.

Não foi só a roupinha, o cabelinho, o jeitinho, nenhum outro “inho” o que mais me comoveu. Pisar no palco é sempre uma responsabilidade – e ver a sua sobrinha de 4 anos fazendo isso pela primeira vez na vida é uma delícia. Mas, muito antes da apresentação começar, o melhor do show já tinha acontecido para mim.

Foi na porta do teatro. Enquanto todas as outras crianças posavam para fotos, em meio a um mar de flashes brancos e sorrisos amarelos, a minha pequena corria, pulava e girava sozinha, driblando qualquer câmera que aparecesse na frente. Era um pequeno tornado dançando pelos ares, abrindo seu próprio caminho, criando seu próprio mundo. Feliz, verdadeira, leve.

Eu achei aquilo tão lindinho e espalhafatoso que deixei minha câmera de lado e fiquei ali onde estava. Não fazia mal não registrar a cena, o mais gostoso daquilo tudo nem cabia em pixels mesmo. Era mágico, intenso, real e só tinha 4 anos.

Meses mais tarde, descobri que a Juju saiu do ballet. Do nada, em um dia como qualquer outro. Resolveu sozinha e comunicou pais, professores e interessados, com a certeza de um adulto bem-resolvido e a simplicidade que só as crianças têm.

Quase fiquei triste por saber que não veria mais aquelas perninhas gordinhas no palco. Quase. Mas no fim, fiquei aliviada. Se a primeira – e talvez última – apresentação da Juju tinha sido tão especial, foi porque ela viveu o momento que quis, de um jeito só seu. Foi pura vontade dela e seria muito diferente se fosse a de outra pessoa.

Que delícia saber que não querer é não fazer. No fundo, é simples assim, sim. A gente acaba esquecendo quando passa muito tempo posando para a lente dos outros. Mas, se depender de mim, a Juju nunca vai esquecer duas coisas: que a vida é mais legal para quem faz o que gosta e que a gente pode mudar o passo sempre que quiser. Mesmo no meio da música.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Os meus que podiam ser seus

Tem coisas que eu não conto para ninguém. Nem para você. Segredo? Não. Eu até queria contar, mas não saberia como. Se pelo menos desse para fotografar esses pensamentos atrapalhados que apostam corrida, passam a perna um no outro e de vez em quando causam alguns capotes, seria mais fácil te mostrar. Mas palavras não, ah não. Não funcionariam. Se eu bem conheço, elas iam dramatizar demais o que não tem drama ou arrancar alguma sutileza daquilo que é mais grosseiro, pesado, cinza. E assim não, tinha que ser exatamente como é. Cru, sem tradução.

Mas se você pudesse ser uma celulinha besta, se entrasse pelo meu sangue, se chegasse no meu cérebro e de repente trombasse com um ou outro desses meus pensamentos triatletas, aí sim. Ia ser imediato. De repente, essa esquisitice que é só minha seria sua também. Por pura osmose.

E aí a gente nunca mais precisaria não falar sobre isso porque tudo já estaria lá. De vez em quando, nos momentos de silêncio, ia passar correndo pelos nossos olhos um segundo antes de a gente piscar, mas quando as pestanas se levantassem de novo, já teria ido embora. Que nem um sonho bom que desperta você no meio da noite deixando a dúvida se foi sonho mesmo. Enquanto pensa, você vira o corpo para o outro lado da cama e deixa o sorriso ir se desmanchando sozinho. O sono vai reabrindo suas asas coloridas. Devagarzinho, é dia.

O que se fala, o que não se fala.

No começo eu não queria nem entrar. Do lado de fora, via a grama verdinha, os bancos românticos de madeira, as flores bem regadas. Mas de vez em quando uma bengala esquecida, me despertando da expectativa inocente de encontrar o que as pessoas chamam de lar.

Não que o nome Casa de Repouso me enganasse, com todos seus arabescos e a cor azul bebê, lembrando um universo infantil forçado. Mas é que antes de pisar aqueles 3 metros para dentro, eu ainda conseguia dar uns tapas na imaginação cada vez que ela insistia em pintar um quadro muito feio. Agora, já era mais difícil ignorar o cheiro de xixi misturado com produto de limpeza, os andares sem direção, os quilos de pele enrugada e um ou outro olhar me atravessando o corpo.

Minha reação não variava muito: exagerava na simpatia, fingia estar absolutamente acostumada a toda e qualquer cena, virava os olhos sutilmente para outra direção quando necessário. Sorria o maior sorriso que conseguia e esquecia ele lá. Mas, depois de um tempo, a boca perdia a vontade de ser grande e se contraía de novo. E quando isso acontecia, sempre que isso acontecia, algumas palavras iam se juntando aleatoriamente na minha garganta e, quando não cabiam mais sem eu engasgar, saíam voando em alguma direção não muito certa. Eu deixava elas irem para onde queriam, serem o que tinham vontade de ser, contanto que preenchessem o vazio daquele ar quente.

E daquela vez elas foram correndo, meio tortas, esbarraram em alguns cabelinhos brancos e macios e enfim chegaram aos ouvidos da Dona Carmem. A senhora fez aniversário, né? Que bacana, teve festinha? Ah não, minha filha, antes era eu e o velho, agora o velho se foi, não teve festa não. Ah tá, pensei que tinha. Tido. Festa.

Se eu nunca soube responder ou comentar esse tipo de comentário, não é agora que saberia. Muito menos tendo vindo com a naturalidade de quem conta que a novela das 8 acabou. Mas ela não parecia se importar com a minha reação ou falta dela. Acho que nada superava o fato de pelo menos eu estar lá, segurando sua mão, fazendo um carinho desengonçado com os dedos, ainda que falando sempre as mesmas coisas: o calor, a chuva, o trabalho, a bonequinha ao lado da cama, de quem é?

Queria falar mais. Queria contar uma história. Queria perguntar, o que a senhora achar de estar aqui? Queria saber quanto tempo durou sua juventude e quando foi que ela se olhou no espelho e viu que os anos tinham passado. Mas isso não, isso eu nunca falaria. O calor, a chuva e a bonequinha ao lado da cama vão ser sempre mais bobos e seguros. E quando o assunto acabar, como sempre acaba, eu vou dizer que preciso ir, mesmo nunca precisando. Vou me despedir, prometer com os olhos que volto logo e tentar não sair de lá com a sensação de que é tudo matemática: quantos anos, quantos sorrisos, quantos momentos, quantos sins, quantos nãos, quanta gente, quanta vida, quanto importa.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

10 por hora.

Claro que já se falou o suficiente sobre o trânsito de São Paulo. E sobre o trânsito combinado às chuvas de início de ano, mais ainda. Mas estando aqui, rodeada em uma maré de carros, sem trocar a marcha há mais de uma hora, como falar de outro assunto?
O trânsito é cruel, mas tem seu lado engraçado. É engraçado ver pessoas jovens ou velhas, brancas ou negras, inteligentes ou estúpidas, ricas ou pobres ficarem absolutamente presas no mesmo espaço. Uma ao lado da outra, com menos de 2 metros de distância. E mais engraçado ainda é que quase todas, apesar das diferenças, reagem do mesmo jeito: colocam a cabeça para fora, gesticulam, dão farol alto, batem a mão no volante, xingam aos céus, formam um furacão de bufadas e suspiros e claro, buzinam. Eternamente. Algumas chegam a sair do carro, injustiçadas, e logo voltam para ele, desconsoladas.
É preciso no mínimo uma década de treino prático e intensivo para ver graça nisso tudo. E, ainda assim, é uma habilidade tão particular que deveria ser destaque em qualquer currículo: “15 anos dirigindo no trânsito de São Paulo. Capacidade única de rir do congestionamento – e de si mesmo”.
Trânsito é vida. Não tenho a menor dúvida de que tudo o que eu já vi de mais bizarro aconteceu em meios aos carros, fumaça e ronco de motores. De casais se matando a casais matando qualquer tipo de pudor em público. De gente tirando caca do nariz a gente sem nariz. De pessoas se matando de rir a querendo se matar de tédio. Ou matar alguém de raiva. Gente gritando, chorando, gargalhando, cantando, surtando, competindo, comendo, sonhando, lendo, escrevendo, explodindo, espreguiçando.
A vida no trânsito é praticamente uma vida paralela e nela passamos cada vez mais tempo. Suspeito que um dia vamos inverter as bolas de vez: a vida paralela vai acontecer em casa, no trabalho, na escola; e a vida oficial vai ser a do trânsito. Quem sabe assim tudo fica mais claro e começamos a ter paz. Ou não, porque o gritar, o xingar, o competir e o ameaçar vão acontecer em outro lugar: em casa, no trabalho, na escola. Mas já não é assim? Fiquei confusa.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Visita

Fazia tempo que eu não tinha insônia, mas ela chegou na ponta dos pés, levantou o lençol devagarzinho e se deitou do meu lado, aqui na cama. Batemos o maior papo. Sobre a vida, sobre os planos, sobre a música tocando no iPod, sobre o colchão que às vezes afunda demais, sobre o desinfetante que comprei de besteira, sobre o livro esperando para ser lido, sobre saudades de ter cachorro, sobre as pessoas e suas esquisitices. Esquisito é fechar um olho de cada vez e ver que a estrela do céu muda de lugar. Um pouco mais para cá, um pouco mais para lá e eu testando; impossível saber onde ela fica de verdade. Subjetivo como todo o resto. Como a felicidade, como os filmes que eu mais gosto, como uma meia-ponta que perde o equilíbrio, mas não o charme. Tinha é perdido o sono, mas encontrei: escondido entre um pensamento, uma última música e um ponto final.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O que você faz com as coisas em que acredita?

Não as que pesquisou, entendeu, pós-graduou e concluiu, mas as mais simples. Aquelas em que acredita porque sente e, sentindo, simplesmente sabe. O que você faz com elas? Se mesmo querendo gritar, você mal consegue falar a respeito sem parecer lugar comum. Sem ser vista como ingênua. Sem ter que entrar no jogo e discutir as regras para pelo menos parecer razoável, maleável, aberta a tudo aquilo que, no fundo, você nem precisava ouvir. O que você faz?
O que você faz se em um minuto o assunto acaba e tem alguma coisa mais importante passando na TV? Se discutir o seu jeito de pensar é uma concessão e discutir o resto é entender como o mundo funciona. O que você faz se para você não funciona?
O que você faz se o recipiente em que você resolveu guardar tudo, mais perto do cérebro que do coração, de repente transborda? E você não tem mais onde guardar. Como você faz para largar tanto pensamento solto, para ignorar, para deixar, para esquecer; como você faz para passar ou para nem perceber?
O que você faz com aquela lágrima quente que sobe pela sua garganta, domina seu olho e de repente despenca pelo seu rosto antes que você culpe o cisco? O que você faz com essa imagem toda embaçada? E com a noite lá fora? E com o travesseiro aqui dentro? O que você faz com esses momentos raros e ruins em que as coisas realmente importam?

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Assim.

Um dia ela acordou achando que estava louca. Mas não por achar.

É que era janeiro, mas não chovia.

Era segunda, mas não tinha trânsito.

Era 7h30, mas o vizinho não tossia.

Era cedo, mas não tinha sono.

Era hora de sair, mas dava para tomar café.

Era para trabalhar, mas resolveu passear.

Era para descer de elevador, mas usou a escada.

Era no meio da rua, mas os carros paravam.

Era barulho, mas não incomodava.

Era cheio, mas tinha espaço.

Era longe, mas dava para ir a pé.

Era um caminho, mas escolheu outro.

Era o parque de sempre, mas parecia novo.

Era grama, mas virou colchão.

Era nuvem, mas parecia algodão.

Era sozinha, mas estava completa.

Era para pensar, mas quis sonhar.

Era de olhos fechados, mas via tudo.

Era pouco, mas valia muito.

Era um dia, mas virou noite.

Era simples, e pronto.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Charlotte.

Na hora do almoço, quando bateu um solzinho, larguei o corpo na cadeira e deixei ficar um pouco. A cabeça tombou para o lado e eu quase cerrei os olhos enquanto o corpo ficava mais quentinho.

Ali perto da árvore, em meio ao raio de sol, vi aquela figura geométrica delicada suspensa no ar. O vento batia e ela ondulava, quase elástica. Sumia na sombra e voltava a aparecer na luz que escapava entre os galhos.

Levantei a cabeça já meio sorrindo porque sabia que valia a pena levar o corpo até lá. Queria ver de perto, sempre quero. Sou fascinada por teias de aranha, mesmo não simpatizando com as donas delas. É quase o reconhecimento de um trabalho perfeito.

Os fiozinhos tão finos, o capricho milimétrico, a harmonia do desenho, o labirinto que vai se formando se você tenta encontrar começo e fim. Para mim, a tradução da leveza. Essencial.

Tentei não pensar no estrago que uma vassoura podia fazer ali, no dia da limpeza. Assim, sem querer, sem pensar ou sem nem perceber. Cruel como o acaso tem o direito de ser. Meus olhos embaçam, nem eu acredito, é só mais uma teia de aranha. E vou torcer para que amanhã continue sendo.

terça-feira, 16 de março de 2010

Um dia (para a Tati)

Um dia passa, vira história, vira risada na mesa do bar

Um dia a gente entende ou não mais sente ou pelo menos fala sem chorar

Um dia a gente levanta e vê que o chão continua lá

Um dia a gente acorda e decide voltar a sonhar

Um dia a imagem desbota e a gente guarda sem se incomodar

Um dia a gente põe um clipe na página do livro que não quer mostrar

Um dia a gente acredita e até vê graça em recomeçar

E um dia vira noite, que vira dia para esse dia enfim chegar.


domingo, 7 de março de 2010

Docinhos

O semáforo fechou, ela abriu o sorriso e foi até o carro da frente. Arrumadinha, a senhora. Casaco para o frio, tiara segurando os cabelos de algodão. Uma mão para trás, elegante, a outra segurando uma bandeja com docinhos.

Mas ela não vendia os docinhos como se vendesse qualquer coisa. Dava para ver o orgulho, o capricho, a receita que a mãe tinha ensinado há tantos anos. Não achei que a luz verde do semáforo mudaria tudo. O carinho, o cuidado, os babadinhos todos viraram olhos de desespero mirando a minha reação. Por favor, moça, espera só eu vender esse docinho. Não que ela tenha falado, mas não que precisasse. Foi só a curva da sobrancelha, o brilho a mais nos olhos, as mãos agora perdidas sem saber se acenavam para mim ou entregavam os docinhos para o motorista.

Quando as moedinhas foram para o bolso do casaco, ela se apressou em sorrir para mim. E eu sorri de volta, sem graça e com uma sensação esquisita. Queria que ela soubesse que não foi um sacrifício. Que eu nem pensei em buzinar. Que é preciso um mínimo de educação e gentileza. E que não me custava perder um segundo para que ela pudesse ganhar um real.

Passei pela senhora e vi no retrovisor o semáforo fechando de novo. Ela já estufava o peito, levantava a cabeça e vestia-se de dignidade mais uma vez. Torci para o moço do carro de trás também querer um docinho.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Ali

Qual a probabilidade de eu pisar em casa e dar de cara com a tarrachinha do brinco, que notei no meio do dia que não estava mais na orelha?

Pouca.

Mas sem querer, sem pensar, sem nem esperar, lá estava ela. Achada, e não perdida. Como tantas coisas que eu já encontrei sem procurar: só abrindo os olhos.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Testando

Ontem de manhã deixei um cotonete estrategicamente posicionado na pia para que de noite, quando eu voltasse, pudesse olhar para ele de novo. Um jeito meu de me lembrar que o tempo passa.

Passou, voltei e ele estava lá, do jeito que deixei. Exatamente igual. Estátua.

Um perigo isso. Hoje vou testar com uma maçã.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

2 minutos e 1 fora

Não lembro quantos anos eu tinha, era moleca. Andava de bicicleta na rua e ia parando para conversar com alguém aqui, alguém lá. Sentava na calçada e passava o dia todo batendo papo, dando risada, sujando a roupa. Era época de trocar prioridades: ser a cestinha do time de basquete ou deixar a unha crescer? Demorei pra largar o visual camiseta e bermuda de cotton, mas já tinha jogado a franja para o lado. E já olhava no espelho mais do que 2 vezes por dia.

E justo naquele, deveriam ter sido umas 4. Saí com a bicicleta e a franja para o lado que nunca parava por causa do vento. No começo da rua tinha a Dani e, no final, o tal Alê. Cara de irmão mais velho. Metidinho, achei que me olhava demais. Que olhasse, eu não queria nada. Sentei na metadinha do banco, apoiei os braços no guidão e devolvi a encarada. Só por devolver. Só para abusar. Cerrei os olhos e segurei o ar irresistível de capa de revista. Levou uns 2 minutos até que ele parasse a conversa com a Dani e falasse comigo: “Por que você fica assim, quase fechando o olho e franzindo a testa? Fica tão feinha."

Crescer é cruelmente engraçado.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Rita.

Passei a infância toda dividindo o quarto com a minha irmã. O que criou zilhões de lembranças que, de tempo em tempo, se pirulitam na minha memória. E uma delas é a Rita.
Rita era uma pomba que aparecia todos os dias no parapeito da nossa janela. O que para qualquer um seria uma mera pomba pousando por perto, para a gente era a visita diária da Rita.
Mas nem todo mundo em casa tinha pela Rita a mesma afeição que a gente tinha. Cada vez que ela aparecia na janela, o cachorro latia estridente e os papagaios gritavam todos os palavrões que conheciam. O que fazia minha mãe aparecer na cozinha e espantar a injustiçada Rita com a vassoura: “Ssshhhhhh! Shhhh! Passa!”. Todo santo dia.
Desde aquela época, Rita virou sinônimo de categoria para mim e para minha irmã. Qualquer pomba passou a se chamar Rita. Tinha uma Rita no meio da praça. Uma Rita deu um rasante na minha cabeça. As Ritas premiaram o carro que eu acabei de lavar e por aí vai.
Agorinha, por exemplo, uma Rita cruza o salão de espera na rodoviária. Ousada até. Vai passeando entre as pernas e maletas do povo sentado, pegando uma migalha aqui e outra lá, no máximo dando uma corridinha quando um pé chega mais perto do que o esperado.
O mais esquisito não é a desenvoltura da Rita, mas o fato de as pessoas nem darem bola pra ela. Nem um “Xô”. Nem um olhar enojadinho. Agora que a Rita resolveu voar, foi só porque não tinha mais o que comer aqui embaixo. Ou para encontrar a outra Rita no telhado e ficar lá de cima confabulando um ataque cirúrgico às nossas cabeças.
Se eu fosse um pouco menos maluca, a essa altura não estaria quase acreditando que aquela Rita era a nossa Rita.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Sobra

Tão pouco tempo. Tão poucas pessoas. Tão poucos motivos. Tão pouca surpresa. Tão poucos cheiros. Tão poucas fotos. Tão poucos doces. Tão pouco espaço. Tão poucas letras. Tão pouca música. Tão pouco pink. Tão poucos pés. Tão pouco ar. Tão pouco silêncio. Tão pouco sol. Tão pouco sou. Tão pouco sono. Tanta vontade.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Seu moço velho também quase levantando

Pelo jeito minha sina é encontrar pessoas em transportes públicos que estão quase descendo, mas não descem. Depois da Dona Japonesa, agora o Seu Moço Velho – e fedido, coitado. O ponto devia estar chegando, mas continuou chegando por muito tempo e ele lá: corpo torto, um pé à frente, exalando pelo ônibus a sua expectativa de descer.
Claro que ele poderia só estar passeando. Ou quem sabe fazendo aquilo que eu já pensei tantas vezes em fazer, que é pegar um ônibus qualquer, descer em um ponto qualquer, pegar outro ônibus qualquer e assim por diante, só para ver onde vai parar. Mas o que não ornava é que ele parecia realmente concentrado em não perder o ponto, que passou mais de 20 minutos sem chegar. Tempo suficiente para eu exercer minha velha mania de adivinhar a vida curiosa de pessoas estranhas.
Por que ele pegou o ônibus? Porque decidiu aparecer de surpresa na casa do filho que não o visitava há mais de 6 anos. Desde a vez em que ele anunciou que só tomaria banho 2 vezes por mês. Já não tinha mais a velha, já não trabalhava, vivia sozinho. Banho para quem? Estava bem assim. A barba crescia e mal deixava a sujeira passar. Estava ótimo assim. Mas o filho, que nunca entendeu nada da vida, resolveu cortar relações. Pau mandado da garota que se maquiava todo dia, só podia ser. Queria ver a cara deles quando chegasse. E já estava quase lá. Era o próximo. Vai devagar, motorista. É esse aqui, logo ali. Só mais um bocado. Agora sim, está pertinho. Depois daquela árvore. Depois daquela esquina. Depois daquela casa. Será que já passou?

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Click. Click de novo.

Acho que entendi de uma vez por todas porque eu gosto tanto de fotos: tem a ver com o fato de a minha memória ser péssima. Quando eu registro, vejo de novo. E quando vejo de novo, tenho o sentimento mais uma vez. O que, claro, pode ser bom ou ruim, mas sempre vai ser melhor do que um mero “nada”.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Hum.

Me ocorre que: ser sempre igual cansa mais que mudar todo santo dia.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Dona Japonesa quase levantando

Paraíso. Entro no trem cheio, mas dou sorte. A Dona Japonesa está ali, sentadinha na beira do banco, o corpo meio torto, prestes a levantar. Chego perto. Dia cansativo, pernas doendo, cabeça cheia, costas tortas. A Dona Japonesa quase levantando veio a calhar.
Vergueiro. Gente entra, gente sai, mas a Dona Japonesa continua ali. Deve ter se confundido. Tanto que continua na beirinha do banco, mão firme na sacola plástica apoiada no chão. Quase, quase levantando. Logo ali vaga um banco, mas sou fiel ao lugar da Dona Japonesa. Afinal, no próximo ela já desce.
São Joaquim. Porta abre, apito apita, porta fecha e nada de a Dona Japonesa se levantar. Nem para frente, nem para trás; nem para um lado, nem para outro. Só o quase de 2 estações atrás. Faz sentido: em que outra estação poderia descer a dona Japonesa senão na próxima?
Liberdade. Outras Donas Japonesas entrando e saindo, mas não a minha. Começo a achar que ela não se levanta porque não consegue. Falta força nas pernas? Será que ofereço ajuda? Atrás dela, mais da metade do banco vazio. Eu caberia ali até de perna esticada, mas seria falta de respeito com a senhora Dona Japonesa que, coitada, vai descer logo na estação mais cheia.
Sé. É. Teria sido difícil mesmo enfrentar a multidão. Vai ver por isso ela continuou ali, só com meia banda no banco, se preparando para descer na estação seguinte. Din-doum.
São Bento. Uma mão apoiada no banco, outra firme na velha sacola plástica. Deve ser professora de yoga a tiazinha Dona Japonesa, com as costas em 45 graus e pernas de agora eu vou. Mas não vai.
Luz. Já não faço idéia se existe outro banco vazio. Quero é ver se a Dona Japonesa pisca, se muda o corpo 1 cm de lugar, se dá algum sinal de impaciência com a estação que ela sempre acha que está chegando. E nada.
Tiradentes. Meu falta pouco para sentar é cada vez mais um falta pouco para a Dona Japonesa levantar. E ela continua ali.
Armênia. Eu só via de cima a Dona Japonesa. O cabelo quase todo preto, a pele quase enrugada, os óculos quase na ponta do nariz, o casaquinho quase fechado, a sandália quase sem salto. Pelo jeito vai descer comigo.
Tietê. Quase todo mundo desce. Já estou do lado de fora, vendo o trem ir embora com a Dona Japonesa. Dou risada sozinha e me apresso: o ônibus deve estar quase saindo.