quarta-feira, 21 de maio de 2008

O Raio

Aconteceu-me uma vez, num cruzamento, no meio da multidão, no vaivém. Parei, pisquei os olhos: não entendia nada. Nada, rigorosamente nada: não entendia as razões das coisas, dos homens, era tudo sem sentido, absurdo. E comecei a rir.
Para mim, o estranho naquele momento foi que eu não tivesse percebido isso antes. E tivesse até então aceitado tudo: semáforos, veículos, cartazes, fardas, monumentos, essas coisas tão afastadas do significado do mundo, como se houvesse uma necessidade, uma coerência que ligasse umas às outras.
Então o riso morreu em minha garganta, corei de vergonha. Gesticulei, para chamar a atenção dos passantes e – Parem um momento! – gritei – tem algo estranho! Está tudo errado! Fazemos coisas absurdas! Este não pode ser o caminho certo! Onde vamos acabar?
As pessoas pararam ao meu redor, me examinavam, curiosas. Eu continuava ali no meio, gesticulava, ansioso para me explicar, torna-las participantes do raio que me iluminara de repente: e ficava quieto. Quieto, porque no momento em que levantei os braços e abri a boca a grande revelação foi como que engolida e as palavras saíram de mim assim, de chofre.
- E daí? – perguntaram as pessoas. – O que o senhor quer dizer? Está tudo no lugar. Está tudo andando como deve andar. Cada coisa é conseqüência da outra. Cada coisa está vinculada às outras. Não vemos nada de absurdo ou de injustificado!
E ali fiquei, perdido, porque diante dos meus olhos tudo voltara ao seu devido lugar e tudo me parecia natural, semáforos, monumentos, fardas, arranha-céus, trilhos de trem, mendigos, passeatas; e no entanto não me sentia tranqüilo, mas atormentado.
- Desculpem – respondi. – Talvez eu é que tenha me enganado. Tive a impressão. Mas está tudo no lugar. Desculpem. – E me afastei entre seus olhares severos.
Mas, mesmo agora, toda vez (freqüentemente) que me acontece não entender alguma coisa, então, instintivamente, me vem a esperança de que seja de novo a boa ocasião para que eu volte ao estado em que não entendia mais nada, para me apoderar dessa sabedoria diferente, encontrada e perdida no mesmo instante.

Italo Calvino - Um General na Biblioteca

sábado, 17 de maio de 2008

Linda

Existe uma linha muito fininha que separa o “se acomodar” do “não se incomodar”. “Se acomodar” é deixar como está por falta de interesse ou de disposição para mudar. “Não se incomodar” é estratégico: é relevar o que não se pode mudar ou ignorar quando é o melhor que se pode fazer – mas mantendo em mente que o que não agrada é passageiro.
Aprendi isso com uma garçonete filipina, enquanto morei em outro canto. A vida delas não é lá essas coisas mesmo. Longe da família por muito tempo, ganhando muito pouco, recebendo ordens mal-educadas, aguentando desaforo, sendo tratadas como inferiores por uma cultura machista e preconceituosa, para quem só servem as pernas compridas na saia curta do uniforme – e olha lá. Em todo canto, se ouve a voz doce e prestativa: “Yes, sir”, “Ok, ma’am”. E os saltos desengonçados se afastando, apressados.
Quando eu conversava com uma delas, cuidava para não deixar escapar um tom de dó. Exagerava na simpatia para forçar um bate-papo de igual para igual, mas desconfiava que o efeito era contrário: evidenciava nossas diferenças.
Todo almoço sempre foi essa aflição. Até que veio a Linda: uma garçonete filipina que não fazia idéia do significado do seu nome em português e que, quando eu contei, deixou escapar pela primeira vez um sorriso tímido no meio daquele rosto redondo.
Quando eu dizia “Oi, tudo bem?” para a Linda, não queria que ela respondesse – ou pelo menos não de verdade. Mas aquele dia, ela respondeu: “Tudo bem sim. Já que ficar triste não muda nada mesmo, decidi que a partir de agora vou ser feliz. O que você vai pedir hoje?”
Aquilo não soou como piada, era mesmo uma resolução. Quanto tempo teria levado até que ela pudesse acontecer assim, no meio da anotação de um pedido de almoço? Mas aconteceu. E porque a Linda decidiu ser feliz, eu decidi me lembrar sempre dela.