segunda-feira, 25 de julho de 2011

Quatro pãezinhos.

Nunca tinha visto aquela moça atrás do balcão da padaria. Pele branca e bochechas rosadas, como o pessoal do sul normalmente tem. Quando pedi meus quatro pãezinhos, ela mordeu os lábios por um segundo, olhou de relance os poucos que restavam atrás dela e finalmente me disse, com voz de conforto, que o pães fresquinhos já deviam estar chegando. Se eu pudesse esperar.
Antes que eu pensasse no que responder, lá veio outra moça trazendo um cesto enorme de vime. Barulho das cascas torradinhas caindo uma sobre as outras. Cheiro da massa quentinha e vontade de mergulhar em uma piscina de pães.
Sorri e comentei com a moça das bochechas que era a segunda vez que isso acontecia comigo naquela semana. Foi com a maior naturalidade do mundo que ela respondeu: Que felicidade! Vou torcer para a senhora sempre dar sorte assim.
Felicidade era ouvir alguém desejar tão pouco com tanta honestidade. Sorte era ser domingo.
Felicidade e sorte embaladas num saco de papel marrom.

terça-feira, 24 de maio de 2011

My own little Miss Sunshine


A primeira lágrima caiu por corujice, reconheço. Assim que a música começou e as perninhas gordinhas apareceram no palco, eu já amoleci a respiração e me encostei na cadeira, assumindo sem vergonha o meu papel de tia bobalhona. Chorei mesmo. Deixei as lágrimas escorrerem pelo rosto, a voz engasgar, o nariz avermelhar e tudo mais que eu tinha direito.

Não foi só a roupinha, o cabelinho, o jeitinho, nenhum outro “inho” o que mais me comoveu. Pisar no palco é sempre uma responsabilidade – e ver a sua sobrinha de 4 anos fazendo isso pela primeira vez na vida é uma delícia. Mas, muito antes da apresentação começar, o melhor do show já tinha acontecido para mim.

Foi na porta do teatro. Enquanto todas as outras crianças posavam para fotos, em meio a um mar de flashes brancos e sorrisos amarelos, a minha pequena corria, pulava e girava sozinha, driblando qualquer câmera que aparecesse na frente. Era um pequeno tornado dançando pelos ares, abrindo seu próprio caminho, criando seu próprio mundo. Feliz, verdadeira, leve.

Eu achei aquilo tão lindinho e espalhafatoso que deixei minha câmera de lado e fiquei ali onde estava. Não fazia mal não registrar a cena, o mais gostoso daquilo tudo nem cabia em pixels mesmo. Era mágico, intenso, real e só tinha 4 anos.

Meses mais tarde, descobri que a Juju saiu do ballet. Do nada, em um dia como qualquer outro. Resolveu sozinha e comunicou pais, professores e interessados, com a certeza de um adulto bem-resolvido e a simplicidade que só as crianças têm.

Quase fiquei triste por saber que não veria mais aquelas perninhas gordinhas no palco. Quase. Mas no fim, fiquei aliviada. Se a primeira – e talvez última – apresentação da Juju tinha sido tão especial, foi porque ela viveu o momento que quis, de um jeito só seu. Foi pura vontade dela e seria muito diferente se fosse a de outra pessoa.

Que delícia saber que não querer é não fazer. No fundo, é simples assim, sim. A gente acaba esquecendo quando passa muito tempo posando para a lente dos outros. Mas, se depender de mim, a Juju nunca vai esquecer duas coisas: que a vida é mais legal para quem faz o que gosta e que a gente pode mudar o passo sempre que quiser. Mesmo no meio da música.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Os meus que podiam ser seus

Tem coisas que eu não conto para ninguém. Nem para você. Segredo? Não. Eu até queria contar, mas não saberia como. Se pelo menos desse para fotografar esses pensamentos atrapalhados que apostam corrida, passam a perna um no outro e de vez em quando causam alguns capotes, seria mais fácil te mostrar. Mas palavras não, ah não. Não funcionariam. Se eu bem conheço, elas iam dramatizar demais o que não tem drama ou arrancar alguma sutileza daquilo que é mais grosseiro, pesado, cinza. E assim não, tinha que ser exatamente como é. Cru, sem tradução.

Mas se você pudesse ser uma celulinha besta, se entrasse pelo meu sangue, se chegasse no meu cérebro e de repente trombasse com um ou outro desses meus pensamentos triatletas, aí sim. Ia ser imediato. De repente, essa esquisitice que é só minha seria sua também. Por pura osmose.

E aí a gente nunca mais precisaria não falar sobre isso porque tudo já estaria lá. De vez em quando, nos momentos de silêncio, ia passar correndo pelos nossos olhos um segundo antes de a gente piscar, mas quando as pestanas se levantassem de novo, já teria ido embora. Que nem um sonho bom que desperta você no meio da noite deixando a dúvida se foi sonho mesmo. Enquanto pensa, você vira o corpo para o outro lado da cama e deixa o sorriso ir se desmanchando sozinho. O sono vai reabrindo suas asas coloridas. Devagarzinho, é dia.

O que se fala, o que não se fala.

No começo eu não queria nem entrar. Do lado de fora, via a grama verdinha, os bancos românticos de madeira, as flores bem regadas. Mas de vez em quando uma bengala esquecida, me despertando da expectativa inocente de encontrar o que as pessoas chamam de lar.

Não que o nome Casa de Repouso me enganasse, com todos seus arabescos e a cor azul bebê, lembrando um universo infantil forçado. Mas é que antes de pisar aqueles 3 metros para dentro, eu ainda conseguia dar uns tapas na imaginação cada vez que ela insistia em pintar um quadro muito feio. Agora, já era mais difícil ignorar o cheiro de xixi misturado com produto de limpeza, os andares sem direção, os quilos de pele enrugada e um ou outro olhar me atravessando o corpo.

Minha reação não variava muito: exagerava na simpatia, fingia estar absolutamente acostumada a toda e qualquer cena, virava os olhos sutilmente para outra direção quando necessário. Sorria o maior sorriso que conseguia e esquecia ele lá. Mas, depois de um tempo, a boca perdia a vontade de ser grande e se contraía de novo. E quando isso acontecia, sempre que isso acontecia, algumas palavras iam se juntando aleatoriamente na minha garganta e, quando não cabiam mais sem eu engasgar, saíam voando em alguma direção não muito certa. Eu deixava elas irem para onde queriam, serem o que tinham vontade de ser, contanto que preenchessem o vazio daquele ar quente.

E daquela vez elas foram correndo, meio tortas, esbarraram em alguns cabelinhos brancos e macios e enfim chegaram aos ouvidos da Dona Carmem. A senhora fez aniversário, né? Que bacana, teve festinha? Ah não, minha filha, antes era eu e o velho, agora o velho se foi, não teve festa não. Ah tá, pensei que tinha. Tido. Festa.

Se eu nunca soube responder ou comentar esse tipo de comentário, não é agora que saberia. Muito menos tendo vindo com a naturalidade de quem conta que a novela das 8 acabou. Mas ela não parecia se importar com a minha reação ou falta dela. Acho que nada superava o fato de pelo menos eu estar lá, segurando sua mão, fazendo um carinho desengonçado com os dedos, ainda que falando sempre as mesmas coisas: o calor, a chuva, o trabalho, a bonequinha ao lado da cama, de quem é?

Queria falar mais. Queria contar uma história. Queria perguntar, o que a senhora achar de estar aqui? Queria saber quanto tempo durou sua juventude e quando foi que ela se olhou no espelho e viu que os anos tinham passado. Mas isso não, isso eu nunca falaria. O calor, a chuva e a bonequinha ao lado da cama vão ser sempre mais bobos e seguros. E quando o assunto acabar, como sempre acaba, eu vou dizer que preciso ir, mesmo nunca precisando. Vou me despedir, prometer com os olhos que volto logo e tentar não sair de lá com a sensação de que é tudo matemática: quantos anos, quantos sorrisos, quantos momentos, quantos sins, quantos nãos, quanta gente, quanta vida, quanto importa.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

10 por hora.

Claro que já se falou o suficiente sobre o trânsito de São Paulo. E sobre o trânsito combinado às chuvas de início de ano, mais ainda. Mas estando aqui, rodeada em uma maré de carros, sem trocar a marcha há mais de uma hora, como falar de outro assunto?
O trânsito é cruel, mas tem seu lado engraçado. É engraçado ver pessoas jovens ou velhas, brancas ou negras, inteligentes ou estúpidas, ricas ou pobres ficarem absolutamente presas no mesmo espaço. Uma ao lado da outra, com menos de 2 metros de distância. E mais engraçado ainda é que quase todas, apesar das diferenças, reagem do mesmo jeito: colocam a cabeça para fora, gesticulam, dão farol alto, batem a mão no volante, xingam aos céus, formam um furacão de bufadas e suspiros e claro, buzinam. Eternamente. Algumas chegam a sair do carro, injustiçadas, e logo voltam para ele, desconsoladas.
É preciso no mínimo uma década de treino prático e intensivo para ver graça nisso tudo. E, ainda assim, é uma habilidade tão particular que deveria ser destaque em qualquer currículo: “15 anos dirigindo no trânsito de São Paulo. Capacidade única de rir do congestionamento – e de si mesmo”.
Trânsito é vida. Não tenho a menor dúvida de que tudo o que eu já vi de mais bizarro aconteceu em meios aos carros, fumaça e ronco de motores. De casais se matando a casais matando qualquer tipo de pudor em público. De gente tirando caca do nariz a gente sem nariz. De pessoas se matando de rir a querendo se matar de tédio. Ou matar alguém de raiva. Gente gritando, chorando, gargalhando, cantando, surtando, competindo, comendo, sonhando, lendo, escrevendo, explodindo, espreguiçando.
A vida no trânsito é praticamente uma vida paralela e nela passamos cada vez mais tempo. Suspeito que um dia vamos inverter as bolas de vez: a vida paralela vai acontecer em casa, no trabalho, na escola; e a vida oficial vai ser a do trânsito. Quem sabe assim tudo fica mais claro e começamos a ter paz. Ou não, porque o gritar, o xingar, o competir e o ameaçar vão acontecer em outro lugar: em casa, no trabalho, na escola. Mas já não é assim? Fiquei confusa.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Visita

Fazia tempo que eu não tinha insônia, mas ela chegou na ponta dos pés, levantou o lençol devagarzinho e se deitou do meu lado, aqui na cama. Batemos o maior papo. Sobre a vida, sobre os planos, sobre a música tocando no iPod, sobre o colchão que às vezes afunda demais, sobre o desinfetante que comprei de besteira, sobre o livro esperando para ser lido, sobre saudades de ter cachorro, sobre as pessoas e suas esquisitices. Esquisito é fechar um olho de cada vez e ver que a estrela do céu muda de lugar. Um pouco mais para cá, um pouco mais para lá e eu testando; impossível saber onde ela fica de verdade. Subjetivo como todo o resto. Como a felicidade, como os filmes que eu mais gosto, como uma meia-ponta que perde o equilíbrio, mas não o charme. Tinha é perdido o sono, mas encontrei: escondido entre um pensamento, uma última música e um ponto final.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O que você faz com as coisas em que acredita?

Não as que pesquisou, entendeu, pós-graduou e concluiu, mas as mais simples. Aquelas em que acredita porque sente e, sentindo, simplesmente sabe. O que você faz com elas? Se mesmo querendo gritar, você mal consegue falar a respeito sem parecer lugar comum. Sem ser vista como ingênua. Sem ter que entrar no jogo e discutir as regras para pelo menos parecer razoável, maleável, aberta a tudo aquilo que, no fundo, você nem precisava ouvir. O que você faz?
O que você faz se em um minuto o assunto acaba e tem alguma coisa mais importante passando na TV? Se discutir o seu jeito de pensar é uma concessão e discutir o resto é entender como o mundo funciona. O que você faz se para você não funciona?
O que você faz se o recipiente em que você resolveu guardar tudo, mais perto do cérebro que do coração, de repente transborda? E você não tem mais onde guardar. Como você faz para largar tanto pensamento solto, para ignorar, para deixar, para esquecer; como você faz para passar ou para nem perceber?
O que você faz com aquela lágrima quente que sobe pela sua garganta, domina seu olho e de repente despenca pelo seu rosto antes que você culpe o cisco? O que você faz com essa imagem toda embaçada? E com a noite lá fora? E com o travesseiro aqui dentro? O que você faz com esses momentos raros e ruins em que as coisas realmente importam?