sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

O gordinho, o periquito, o realejo. E eu.

Com exceção de motoristas em hora de rush e pessoas com fome na fila do almoço por kilo, eu costumo ser uma pessoa que gosta de gente (principalmente, e muito mais, das educadas). Tanto que, até em São Paulo, gosto de andar na rua, ver como as pessoas pisam, para onde olham, se tropeçam e riem ou fingem que nada aconteceu. Gosto de olhar para suas caras, ver como se comportam e chegar às minhas próprias conclusões daquilo que são. E devo errar muito – o que não faz a menor diferença porque quase nunca fico sabendo. Quase.
Na João Cachoeira lotada por causa do Natal, tinha aquele gordinho parado na calçada com um realejo e um periquito na casinha. Enquanto andava na direção dele, fui ensaiando o olhar de reprovação. Pensei no que dizer, se seria curta e grossa ou faria um discurso. Não, discurso não. Só viraria a cara, um tapa com luva de pelica. Mas muito sutil...? Podia balançar a cabeça com um “tsc tsc”, mais humilhante. Talvez meio infantil. Então uma cara de susto ao estilo “Não a-cre-di-to nisso!” Ou olhar para o bichinho e fazer cara de pena? Puxar o celular e ligar para o Ibama?
Com tantas opções, decidi chegar perto e responder à altura do que ele ousasse fazer. E apertei o passo. A 3 metros, ele levantou a cabeça. A 2 metros, me olhou. A 1 metro, sorriu. Não um sorriso, mas um desses jatos de ternura instantânea.
Só deu tempo de retribuir o sorriso. E quando começou a musiquinha, com o periquito de um lado para o outro, me saiu um “Não, obrigada”. Por me fazer errar mais uma vez.

E por falar em.

“Tem de ser um nervo, a ternura. Um nervo que se rompe e não se pode costurar. Poucos homens conheci que tivessem atravessado as provas de dor e violência, façanha rara, com a ternura invicta. Raul Sendic foi um desses homens. Me pergunto, agora, o que terá sobrado de Raul. Lembro dele com seu sorriso de bebê de cara tosca, cara de barro, perguntando-me entre os dentes:
- Tem uma gilete aí?
Raul acabava de comprar um terno na lojinha de um turco que vendia roupa usada, na Cidade Velha, e se sentia o mais elegante do mundo naquele saco de estopa marrom com listinhas da mesma cor. Mas o terno não tinha o bolsinho da calça, tão necessário para as moedas. E ele fez o bolsinho com uma gilete e um grampeador de escritório.”

Dias e Noites de Amor e de Guerra.
Eduardo Galeano.