quinta-feira, 10 de junho de 2010

Assim.

Um dia ela acordou achando que estava louca. Mas não por achar.

É que era janeiro, mas não chovia.

Era segunda, mas não tinha trânsito.

Era 7h30, mas o vizinho não tossia.

Era cedo, mas não tinha sono.

Era hora de sair, mas dava para tomar café.

Era para trabalhar, mas resolveu passear.

Era para descer de elevador, mas usou a escada.

Era no meio da rua, mas os carros paravam.

Era barulho, mas não incomodava.

Era cheio, mas tinha espaço.

Era longe, mas dava para ir a pé.

Era um caminho, mas escolheu outro.

Era o parque de sempre, mas parecia novo.

Era grama, mas virou colchão.

Era nuvem, mas parecia algodão.

Era sozinha, mas estava completa.

Era para pensar, mas quis sonhar.

Era de olhos fechados, mas via tudo.

Era pouco, mas valia muito.

Era um dia, mas virou noite.

Era simples, e pronto.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Charlotte.

Na hora do almoço, quando bateu um solzinho, larguei o corpo na cadeira e deixei ficar um pouco. A cabeça tombou para o lado e eu quase cerrei os olhos enquanto o corpo ficava mais quentinho.

Ali perto da árvore, em meio ao raio de sol, vi aquela figura geométrica delicada suspensa no ar. O vento batia e ela ondulava, quase elástica. Sumia na sombra e voltava a aparecer na luz que escapava entre os galhos.

Levantei a cabeça já meio sorrindo porque sabia que valia a pena levar o corpo até lá. Queria ver de perto, sempre quero. Sou fascinada por teias de aranha, mesmo não simpatizando com as donas delas. É quase o reconhecimento de um trabalho perfeito.

Os fiozinhos tão finos, o capricho milimétrico, a harmonia do desenho, o labirinto que vai se formando se você tenta encontrar começo e fim. Para mim, a tradução da leveza. Essencial.

Tentei não pensar no estrago que uma vassoura podia fazer ali, no dia da limpeza. Assim, sem querer, sem pensar ou sem nem perceber. Cruel como o acaso tem o direito de ser. Meus olhos embaçam, nem eu acredito, é só mais uma teia de aranha. E vou torcer para que amanhã continue sendo.

terça-feira, 16 de março de 2010

Um dia (para a Tati)

Um dia passa, vira história, vira risada na mesa do bar

Um dia a gente entende ou não mais sente ou pelo menos fala sem chorar

Um dia a gente levanta e vê que o chão continua lá

Um dia a gente acorda e decide voltar a sonhar

Um dia a imagem desbota e a gente guarda sem se incomodar

Um dia a gente põe um clipe na página do livro que não quer mostrar

Um dia a gente acredita e até vê graça em recomeçar

E um dia vira noite, que vira dia para esse dia enfim chegar.


domingo, 7 de março de 2010

Docinhos

O semáforo fechou, ela abriu o sorriso e foi até o carro da frente. Arrumadinha, a senhora. Casaco para o frio, tiara segurando os cabelos de algodão. Uma mão para trás, elegante, a outra segurando uma bandeja com docinhos.

Mas ela não vendia os docinhos como se vendesse qualquer coisa. Dava para ver o orgulho, o capricho, a receita que a mãe tinha ensinado há tantos anos. Não achei que a luz verde do semáforo mudaria tudo. O carinho, o cuidado, os babadinhos todos viraram olhos de desespero mirando a minha reação. Por favor, moça, espera só eu vender esse docinho. Não que ela tenha falado, mas não que precisasse. Foi só a curva da sobrancelha, o brilho a mais nos olhos, as mãos agora perdidas sem saber se acenavam para mim ou entregavam os docinhos para o motorista.

Quando as moedinhas foram para o bolso do casaco, ela se apressou em sorrir para mim. E eu sorri de volta, sem graça e com uma sensação esquisita. Queria que ela soubesse que não foi um sacrifício. Que eu nem pensei em buzinar. Que é preciso um mínimo de educação e gentileza. E que não me custava perder um segundo para que ela pudesse ganhar um real.

Passei pela senhora e vi no retrovisor o semáforo fechando de novo. Ela já estufava o peito, levantava a cabeça e vestia-se de dignidade mais uma vez. Torci para o moço do carro de trás também querer um docinho.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Ali

Qual a probabilidade de eu pisar em casa e dar de cara com a tarrachinha do brinco, que notei no meio do dia que não estava mais na orelha?

Pouca.

Mas sem querer, sem pensar, sem nem esperar, lá estava ela. Achada, e não perdida. Como tantas coisas que eu já encontrei sem procurar: só abrindo os olhos.